quarta-feira, 8 de abril de 2020

CRÔNICA: O enredo intenso da Libertadores de 2009 aos olhos cruzeirenses onze anos depois.



Por Lucas Guimarães

Reviver a dor, revirar lembranças e encontrar uma história fechada. Dramática, mas rica. Tudo que só o sentimento Libertadores pode proporcionar. Na época em que a 50ª edição da Copa Libertadores começou, eu não tinha completado nem uma década de vida. Minhas lembranças eram mais sentimentais do que qualquer outra coisa, eu lembrava da alegria no primeiro jogo, do espanto por um golaço nas oitavas, do alívio das quartas, da explosão na semi, e do vazio depois da final. A história eu sempre soube, mas o trauma nunca tinha deixado eu saboreá-la como merecia. A quarentena deixou, onze anos depois eu pude olhar pro passado e aproveitar a trajetória.

O épico foi aberto no Mineirão, no antigo e charmoso Mineirão. Em 19 de fevereiro o Cruzeiro estreou contra o Estudiantes em um jogo arrastado. Depois de um 0 a 0 nervoso no primeiro tempo, aos 14 minutos da segunda etapa, o técnico Adilson Batista colocou na partida a maior contratação do Cruzeiro para a temporada, Kléber Gladiador. Com 25 anos, ele tinha feito um 2008 bom pelo Palmeiras, e havia chegado à Minas na transação que levou a promessa Guilherme, de só 20 anos, para o Dínamo de Kiev. Com Kléber em campo, o Cruzeiro fez 1 a 0 em um pênalti batido pelo lateral esquerdo forte e careca Fernandinho, depois de um pênalti sofrido por Wellington Paulista, que acabava de chegar de um bom Brasileirão 2008 pelo Botafogo. Com duas ótimas assistências de Wellington Paulista, Kléber marcou duas vezes, aos 23 e 27 minutos. E depois do segundo amarelo, Kléber foi expulso no minuto 29, após uma entrada por trás em Sebastián Verón. Em 15 minutos, o estreante marcou dois gols e levou o vermelho. Esse jogo eu lembro de rir com a expulsão do Kléber, de tão anestesiado que eu estava. Até uma criança de nove anos sentia o peso de ter um bad boy tão carismático no clube.         


Cruzeiro estreou bem demais na Libertadores. 3 x 0 Sobre o Estudiantes.
(FOTO: RODRIGO CLEMENTE/O TEMPO)


Depois da trajetória ser iniciada com um personagem roubando a cena no 3 a 0 contra o Estudiantes de La Plata, o Cruzeiro amargurou um empate com o Deportivo Quito no apagar das luzes. Pra menos de 7 mil pagantes no Equador, o Cruzeiro abriu o placar com Ramires, que tinha apenas 21 anos. Mas, aos 46 minutos do segundo tempo, a equipe da casa arrancou o empate suado. Na terceira rodada, o Cruzeiro foi à altitude de Sucre e lá bateu o Universitario por 1 a 0. O gol foi do atacante de 23 anos na época Thiago Ribeiro, com um belo passe do ótimo lateral direito Jonathan, que também tinha 23 anos, e em 2011 iria jogar na Inter de Milão recém campeã da Champions, mas o lateral não se firmou lá.       

A quarta página daquele roteiro foi escrita por Wellington Paulista. O camisa 9, que não se prendia à centravância comum desse número, fez os dois gols da segunda vitória do Cruzeiro em cima do Universitario de Sucre. Juan Pablo Sorín jogou a partida inteira, e esta foi a única dele na Libertadores 2009, mas daqui a pouco eu continuo sobre ele. 

Na quinta rodada o Cruzeiro voltou a enfrentar o Estudiantes. O jogo atrasou mais de 40 minutos pela dificuldade do Cruzeiro fazer o trajeto Buenos Aires à La Plata. Os jogadores brasileiros mal tiveram tempo de aquecer no gramado, e o jogo já precisava começar. Adilson Batista, que não tinha o apelido de Professor Pardal atoa, escalou uma equipe bizarra; quatro volantes; já que Ramires, apesar de boa chegada no ataque, sempre foi um volante com características de meia, e não um meia; Gerson Magrão, lateral-esquerdo improvisado como meia de ligação; e Wellington Paulista isolado no ataque. O Estudiantes passou o carro, um sonoro 4 a 0. Um bom clímax para iniciar o segundo ato desse roteiro.

Equipe argentina não tomou conhecimento e aplicou uma sonora goleada no Cruzeiro.
(FOTO: REPRODUÇÃO/UOL)


Ainda líder do grupo, mas com um baque, o Cruzeiro fechou a fase de grupos enfrentando o Deportivo Quito no Mineirão, em 22 de abril. Menos de uma semana depois do meu aniversário de dez anos. O placar de 2 a 0 foi construído antes de meia hora de jogo, sem muitos problemas, e assim acabou a primeira fase cruzeirense. Com 13 pontos, classificou-se em primeiro do grupo, e o Estudiantes de La Plata ficou com a segunda vaga com seus 10 pontos. No sorteio às oitavas, o Cruzeiro teve que confrontar a Universidad de Chile. Era um bom time da LaU, que no ano seguinte seria semifinalista da Libertadores batendo o Flamengo do ‘império do amor’, que na época era o então campeão brasileiro. Era, mais do que tudo, a LaU de Montillo, o craque argentino que viraria ídolo no Cruzeiro. Grande Montillo. 

O homem de confiança de Adilson era o volante versátil Marquinhos Paraná, que na época tinha 31 anos. Limitadíssimo, mas deixa tudo que tinha dentro da cancha. Adilson o colocava em toda e qualquer posição em campo. A impressão era que na beira do gramado Adilson girava uma roleta, e a posição que caísse, era a que Marquinhos Paraná seria utilizado. Mas é inegável que a trajetória do mesmo pelo Cruzeiro entrou nas páginas heroicas e imortais, mesmo sem um grande título. No jogo de ida no Chile, Marquinhos Paraná marcou o segundo gol Cruzeiro. Foi um sem pulo espetacular que eu não conseguia acreditar que tinha saído do pé direito dele. O primeiro gol tinha sido feito pelo atacante Soares. No final, um 2 a 1 importante no Chile. No Mineirão um 1 a 0 xoxo. Kléber marcou numa falha do goleiro da LaU Miguel Pinto.         

Cruzeiro classificado para as quartas de final da LA 2009 após bater a LAU com gol de Kleber.
(FOTO: REPRODUÇÃO/UOL)

As quartas de finais reservaram um confronto enorme. Cruzeiro e o então tricampeão brasileiro consecutivo São Paulo. São Paulo de Jorge Wagner, Hernanes, Washington Coração Valente. Dos futuros bicampeões brasileiros pelo Cruzeiro, Borges e Dagoberto. E do atual volante cruzeirense Jean. Todos sob a tutela de Muricy Ramalho. Ida e volta com mais de 50 mil no estádio. Antes, Mineirão. Leonardo Silva abriu o placar para o Cruzeiro; o futuro traidor aos olhos cruzeirense, e herói aos corações atleticanos. Washington empatou para o São Paulo. E mais tarde, o centroavante Zé Carlos, estreante no Cruzeiro, marcou o segundo gol depois de uma assistência ótima do, mais uma vez, ótimo lateral Jonathan.          

Uma vitória simples do tricolor paulista, amado clube brasileiro, eliminaria o Cruzeiro. O jogo foi muito nervoso. O time celeste segurava o 0 a 0 com unhas e dentes, mordia em cada dividida. Então, na metade do segundo tempo, o volante Henrique, que onze anos depois se tornaria o 8º jogador que a mais vestiu a camisa do Cruzeiro com 516 jogos, afetou um chute magnífico do meio da rua. A bola flutuou até entrar no ângulo direito. Meu pai sempre foi um árduo crítico do Henrique, cruelmente, ele diz que o camisa 8 não acertou um chute sequer de fora da área desde 2009. Mas ali o Henrique aliviou o torcedor, e deu tempo até de Kléber Gladiador fazer o absurdo de pênalti. 


Henrique e Kleber classificam o Cruzeiro para as semifinais.
(FOTO: REPRODUÇÃO/GLOBO ESPORTE)

  
Eu moro com um gremista. Ele brinca até hoje sobre o ‘trauma Wellington Paulista’. O camisa 9 colocou o Cruzeiro na final. Frente à um bom Grêmio comandado por Autuori, com Victor, Réver, Fábio Santos, Tcheco, Souza, Maxi López e Alex Mineiro, o Cruzeiro abriu 3 a 0 no Mineirão com mais de 50 mil cabeças. Wellington Paulista, Wagner e Fabinho, foram os nomes da emoção. Depois, Souza, que como batia bem na bola, diminuiu em uma falta maravilhosa, colocando o Grêmio vivo para o segundo jogo no Olímpico. Com mais de 40 mil gremistas, no jogo de volta Wellington Paulista escrevia mais uma página do enredo. Em dois minutos, o camisa 9 calava o estádio. Aos 34, uma jogada com o selo de raça de Kléber, e aos 36, em um cruzamento sensacional do, de novo, ótimo lateral Jonathan. O Grêmio foi aos vestuários precisando de 5 gols em 45 minutos. Réver e Souza, em mais um golaço, empataram o jogo, mas só isso. Cruzeiro finalista. O terceiro ato, o ato decisivo, foi iniciado no segundo gol de Wellington Paulista. Ali, começou toda tensão, toda apreensão mediante a linha final se aproximando, quem ia bater campeão? Qual o final dessa trajetória?   

O Cruzeiro deixou o Grêmio pra trás e foi em busca do Tri da Liberta...
(FOTO: REPRODUÇÃO/UOL)
     

De volta o vilão, ou o herói, dependendo sob qual ótica se analise. Aquele que estava nos momentos chaves, que construiu o cenário inicial, que caminhou paralelamente. A história de Cruzeiro e Estudiantes de La Plata não acabaria naquele 3 a 0 com Kléber nos holofotes, ou depois no 4 a 0 onde tudo deu errado pros brasileiros, e o time argentino engoliu. Os antagonistas iniciais frente a frente para o confronto final. Primeiro em La Plata. O palco do 4 a 0 onde não existiu Cruzeiro em campo. Sebastián Verón, de novo, colocou a bola de baixo dos braços e foi. Aquele Estudiantes não tinha só ele. Tinha Andújar, Desábato, Enzo Pérez, que depois faria sucesso no Benfica e Valência, Gata Fernández e Mauro Boselli. Mas, não tem discussão, Verón era o protagonista.

Eu lembro do primeiro jogo, eu lembro de não assistir. Eu estava com febre, cansado. Falei pro meu pai que ia deitar, mas que era pra ele me acordar na hora do jogo. Ele não me acordou. Sabendo do resultado no dia seguinte não tinha motivo pra brigar. Seguramos o Estudiantes, deixamos pra decidir em casa. Mas que 0 a 0. Um parêntese sobre o Fábio, com certeza um dos três maiores da história cruzeirense. Ele empatou aquele jogo. Uma atuação perfeita com pelo menos quatro ou cinco milagres. O que o Fábio se transformou em 2009 foi eterno. São, pelo menos, onze anos de altíssimo nível. Barbaridade q falta que ele pegou de Verón e o chute cara a cata do Gata Fernández. Pro roteiro ficar mais trágico, no sentido mais grego das tragédias, caminhando para o final da partida, o lateral Gerson Magrão tentou um cruzamento rasteiro, e o goleiro Andújar se esticou dando um tapa nela. Mas esse tapa falhou. A bola ficou solta, solitário no meio da área. Com o goleiro argentino no chão e gol escancarado, Kléber, que não perdeu seu protagonismo da primeira partida, se afobou. Bateu pra fora.    


FÁBIO, SÃO FÁBIO! O arqueiro celeste segurou o empate no primeiro jogo.
(FOTO: REPRODUÇÃO/GLOBO ESPORTE)

A última cena desse roteiro aconteceu no mesmo local onde ele começou. O embate dos inimigos volta ao seu ponto zero. Pra mais de 65 mil pessoas, o Mineirão foi o palco da batalha final.
Um roteiro espetacular, digno de Kubrick, Coppala ou Tarantino. Uma história fechada que selou seu final dramático, seu fim grandioso, como Um Sonho de Liberdade, Clube da Luta ou Breaking Bad. Aos 6 minutos do segundo tempo, Henrique recebeu de Marquinhos Paraná, bateu de fora da área, a bola desviou em Desábato, e morreu no fundo daquela rede véu de noiva lindíssima do antigo Mineirão. Assim como a falta surpresa de Joãozinho em 76 e o chute improvável de Elivélton em 97. Era a história pronta. As manchetes dos jornais. De novo, heroicamente.

Mas a história planejava um final diferente. Aos 11 minutos, num cruzamento bandido Gata Fernández empatava o jogo. E 16 minutos depois, Verón batia o escanteio, e Mauro Boselli, o artilheiro da 50ª Libertadores, virava o jogo. O Cruzeiro ainda suspirava. Thiago Ribeiro teve duas chances. Um chute no travessão é uma cabeçada pra fora. E o Estudiantes de de La Plata se sagrava tetracampeão da Libertadores. Eu não lembro do vazio, da dor, da destruição. Eu disse que queria me jogar do terceiro andar, que aquilo não podia acontecer. Mas aconteceu. O tão aclamado happy end não acontece em todas as histórias. Nesse caso, ao torcedor do Estudiantes, o roteiro foi perfeito. Que grande Libertadores. Não tem explicação. Não tem que ter explicação.

O tri da Libertadores não veio para o Cruzeiro. Comemoram Verón e Boselli.
 (FOTO: REPRODUÇÃO)
As teorias da conspiração, que já estavam discutindo bicho no vestiário do Cruzeiro no intervalo, ou que Ramires não jogou nada na final porque já estava vendido ao Benfica, eu não vou nem comentar. Era final de Libertadores, não tem jogo maior. E no intervalo o Cruzeiro nem vença a partida. A verdade é que, revendo, o Cruzeiro não jogou nada. Mas era final. E final você não precisa jogar, precisa levantar troféu ao último apito, é só isso. Raras as finais bonitas de bom futebol. Não tem culpado. Se aquela bola do Kléber entrasse, se a bola do Thiago Ribeiro entrasse. Se. Esquecem que só estivemos vivos porque o Fábio fez o que fez na Argentina. Wellington Paulista fez o que fez no Olímpico.      

Talvez o Ramires falando na entrevista à beira do campo, após o 0 a 0 em La Plata, que “em casa, com 1 a 0 a gente é campeão”. O 1 a 0 aconteceu, mas ninguém sabia o que fazer nos 39 minutos que faltavam pra acabar. Dentre todas as hipóteses, a única que eu acredito é a que meu pai endossa. Naquele elenco jovem do Cruzeiro, só um jogador havia segurado a América na mão. Juan Pablo Sorín em 1996, pelo River Plate. Adilson cortou Sorín do banco em uma final de Libertadores contra um time argentino, não existe isso. Não existe jogador menos pecho frio que Sorín, há iguais, mas que não superam. Sorín é gigante, capitão da seleção Argentina, respeitado pela sua história na Argentina, na Europa, no Brasil e na Seleção. Sorín tinha chegado pra encerrar sua carreira no Cruzeiro, chegou em março, e se aposentou pouco mais de três meses depois daquela final, em um jogo com mais de 60 mil cruzeirenses apaixonados por ele.     

Sorín poderia ter feito diferença no banco. Talvez nem precisasse entrar. Talvez faria diferença entrando quando tava 1 a 0 ou 1 a 1. Essa é a única teoria que eu acredito. Eu acredito no Sorín em qualquer contexto, qualquer dia. Minha fé é e será sempre nele. Mas, no final, nada muda o resultado, nem a trajetória. O enredo terminou como uma tragédia shakespeariana aos cruzeirenses, como eu. E talvez não era pra ser. Adilson era um treinador em ascensão, mas que nunca chegou lá. Wagner era o 10 criativo, mas oscilante. Ramires era talentoso, guerreiro, mas inexperiente. Kléber e Wellington Paulista fizeram uma ótima dupla, mas nunca mais tiveram fase igual.

A dor súplica que q lembrança se apague. A grandeza de Verón e o que jogou na final seduz à simplificarmos aquela Copa à última meia hora de partida. O personagem principal, que torcemos, ter sucumbido ao seu antagonista no último ato deixa um gosto amargo. Mas houveram mais coisas além desse gosto. Foi uma história recheada. Tantas vezes o antigo Mineirão abarrotado de gente. Aquela Libertadores não merece ser esquecida.




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